Vatika tem vários outros significados em etrusco antigo. Era o nome de uma uva de gosto amargo que crescia naturalmente na encosta, usada pelos camponeses no fabrico do vinho que adquiriu a má fama de ser um dos piores e mais ordinários do mundo antigo. Era ainda o nome de uma erva estranha que crescia naturalmente na encosta do cemitério e que, quando ingerida, provocava alucinações e delírios. Mais tarde, nesse local foi construído o circo de Nero, o imperador louco. Foi neste circo, segundo a tradição da igreja, que São Pedro foi executado, crucificado de cabeça para baixo, e enterrado numa área próxima. Este local tornou-se o lugar de visitação de um número tão grande de peregrinos que o imperador Constantino, ao converter-se parcialmente ao cristianismo, fundou um santuário na zona que os romanos continuaram a chamar de colina Vaticana. Um século depois de Constantino, os papas começaram também a erguer neste lugar o palácio papal.
Coincidências ou um lugar de atração negativa? O que significa “Vaticano” nos dias de hoje?
Pode referir-se à Basílica de São Pedro; ao Palácio Apostólico dos Papas, com mais de 14 mil aposentos; ao complexo dos Museus Vaticanos com mais de 2 mil salas; à sede da hierarquia político-religiosa de cerca de um quinto da população humana; ao menor país do mundo, a Cidade do Vaticano. É de fato estranho se pensarmos que o menor país do planeta, com uma área aproximada de um oitavo do Central Park de Nova York, abriga a maior e mais valiosa igreja do mundo, o maior e mais sumptuoso palácio do planeta e um dos maiores museus da Terra.
O local mais fascinante de todos, porém, está provavelmente situado dentro dos muros da antiga fortaleza da Cidade do Vaticano, cujo significado simbólico quase todos os visitantes ignoram. A sua importância teológica pode ser melhor compreendida se percebermos que esta realização católica era algo expressamente proibido aos judeus. No Talmude, é claramente proibido a qualquer pessoa construir uma réplica, em tamanho real, do Templo Sagrado de Jerusalém, noutro local que não seja o próprio monte do Templo. Esta lei foi decretada para impedir sangrentos cismas religiosos, como os que aconteceram mais tarde no Cristianismo (entre o catolicismo romano, a ortodoxia oriental e grega e o protestantismo) e, no Islão, entre sunitas e xiitas. Porém, há seis séculos, um arquiteto católico que não estava sob o jugo das leis talmúdicas fez exatamente o que era proibido: desenhou e construiu uma incrível cópia em tamanho real do compartimento mais recôndito do Templo Sagrado do rei Salomão. Para chegar às medidas e proporções exatas, o arquitecto estudou os escritos do profeta Samuel da Bíblia Hebraica, nos quais ele descreve o primeiro Templo. Esta reprodução maciça do heichal, a parte posterior do primeiro Templo, ainda existe hoje e é chamada Capela Sistina, sendo o destino de mais de quatro milhões de visitantes por ano que vêm para ver os incríveis afrescos de Miguel Ângelo e reverenciar um local sagrado do cristianismo.
Terá sido de propósito a construção desta capela?
É que antes da criação desta réplica do heichal do Templo Sagrado de Jerusalém existiu, durante a Idade Média, uma outra capela exatamente no mesmo local. Era chamada Capela Palatina, ou Capela Palaciana. A justificação para a nova construção foi a seguinte: como todos os governantes europeus tinham suas próprias capelas reais para rezar em privado, julgou-se necessário que o Papa também tivesse uma em seu próprio palácio. O objetivo era mostrar o poder da Igreja que tinha de ser visto como maior que o de qualquer soberano secular. A Igreja estava determinada a provar que era o novo poder reinante na Europa e esperava espalhar a cristandade, ou seja, o império do cristianismo, por todo o globo. Esta capela foi projetada para ser um indício da glória e do triunfo futuros, e por isso o Papa desejava que a sua opulência ofuscasse todas as outras capelas reais da Terra. Além da magnífica capela Palatina, existia também a Niccolina, uma pequena capela particular estabelecida pelo papa Nicolau V, em 1450, decorada pelo grande pintor renascentista Frei Angelico. Esta é uma pequena sala numa das partes mais antigas do Palácio Papal, com a capacidade de abrigar o Papa e alguns de seus assessores pessoais.
Voltemos á história da construção da Capela Sistina...
A história tem início com o pontífice Sisto IV que desejou que a capela fosse ainda maior e mais rica que a Capela Palatina, com a única finalidade do seu nome vir a ser recordado como Papa. O nome de batismo de Sisto era Francesco della Rovere. Nascido numa família humilde do noroeste da Itália, numa cidade próxima a Gênova, o sacerdócio foi o seu caminho natural, pois quando jovem tinha inclinação intelectual, mas nenhum dinheiro para frequentar uma universidade. Tornou-se monge franciscano e aos poucos galgou os degraus da escada administrativa e educacional da Igreja, e por fim chegou a ser cardeal em Roma, no ano de 1467. Foi eleito Papa, sem muito alarde, por um conclave de apenas 18 cardeais e adotou o nome de Sisto IV.
Quando o papa Sisto IV iniciou seu reinado em 1471, a Capela Palatina corria o risco de desmoronar. Era uma construção pesada, assente em um local perigoso, o solo mole do antigo cemitério etrusco da encosta da colina Vaticana. Curiosamente, esta situação simbolizava perfeitamente a crise da própria igreja quando Sisto assumiu o poder pois, apenas 18 anos antes, Constantinopla caíra nas mãos dos muçulmanos, marcando a morte do Império Cristão Bizantino. Muitos temiam que Roma pudesse sofrer o mesmo destino de Constantinopla.
Apesar de todas estas ameaças à existência do cristianismo, Sisto IV gastou grandes quantidades do ouro do Vaticano na revitalização dos esplendores de Roma, reconstruindo igrejas, pontes, ruas, fundando a Biblioteca Vaticana e começando uma coleção de arte que se tornaria no Museu Capitolino, hoje o mais antigo do mundo em funcionamento. O seu projeto mais famoso, porém, foi a reconstrução da Capela Palatina. Há muito sobre a história da Capela Sistina que parece obra do destino. Segundo as fontes mais confiáveis, o trabalho de renovação da capela teve início em 1475. Neste mesmo ano, na cidade toscana de Caprese, nascia Michelangelo Buonarroti, ou Miguel Ângelo. Seus destinos unir-se-iam ainda mais fortemente uns anos mais tarde. O papa Sisto IV decidiu não apenas reconstruir a capela papal decadente, mas aumentá-la e torná-la mais sumptuosa pois, como já dissemos, desejava que todos recordassem a sua passagem pela cadeira de S. Pedro. Para isso contratou um jovem arquiteto florentino de nome Bartolomeo (“Baccio”) Pontelli. A especialidade de Pontelli era a construção e o reforço de fortalezas. Isto era especialmente importante para Sisto IV, pois o pontífice tinha tanto medo dos muçulmanos turcos quanto das turbas católicas de Roma. Foi então desenhado o projeto de uma capela enorme, maior que a maioria das igrejas, com um bastião de fortaleza no topo para a defesa do Vaticano.
Talvez nunca saibamos ao certo de quem foi a ideia de construir a Capela Sistina como uma cópia do Templo Sagrado dos judeus, mas Sisto IV, instruído nas Escrituras, conhecia as dimensões exatas, encontradas nos escritos sobre o profeta Samuel no segundo Livro dos Reis. Com isto em mente, talvez se tenha sentido ansioso para dar expressão concreta ao conceito teológico de “sucessionismo”, ideia que significa que uma fé pode substituir outra anterior que deixou de ter efeito. A crença, segundo o sucessionismo, era a de que as filosofias pagãs greco-romanas foram substituídas pelo judaísmo que, por sua vez, fora superado pela Igreja Católica, a fé verdadeira que invalidava todas as outras.
O Vaticano pregava que os Judeus, por terem morto Jesus e rejeitado os seus ensinamentos, foram punidos com a perda de seu Templo Sagrado, da cidade de Jerusalém e também da sua terra natal. Além disso, teriam sido condenados a vaguear pela Terra para sempre, como um alerta divino a todos que se recusassem a obedecer a Igreja. ( Este ensinamento foi rejeitado e proibido categoricamente no Segundo Concílio do Vaticano de 1962). Independentemente de quem teve a ideia, a nova Capela Palaciana foi elaborada para substituir o antigo templo judeu, na qualidade de novo Templo Sagrado da Nova Jerusalém que, a partir de então, seria a cidade de Roma, a capital do cristianismo. Suas medidas são 40,93 metros de comprimento por 13,41 de largura e 20,70 de altura, exatamente como as da seção posterior retangular e longa do primeiro Templo Sagrado, completado pelo rei Salomão. Um fato ainda mais notável que a maioria dos visitantes não percebe, é que em conformidade com a intenção de reproduzir o local sagrado que existia na antiga Jerusalém, o santuário foi construído em dois níveis.
A metade ocidental, que abriga o altar e a área particular destinada ao papa e seu séquito, tem cerca de 15 centímetros a mais de altura do que a metade oriental, originalmente reservada aos espectadores comuns. Esta secção mais alta corresponde ao recesso mais recôndito do Templo Sagrado original, o Kodesh Kodoshim, o Santo dos Santos, onde apenas o sumo sacerdote podia entrar, e somente uma vez ao ano, no Yom Kippur, o Dia da Expiação ou Dia do Perdão. O sumo sacerdote passava simbolicamente pela parochet, a cortina espessa e decorada de linho torcido, chamada pelos evangelhos de véu, para fazer as orações de grande importância pelo perdão e pela redenção do povo. Para mostrar exatamente onde este véu era localizado no Templo de Jerusalém, foi construída na capela do Vaticano uma enorme parede divisória de mármore branco em forma de grade, com sete “chamas” de mármore no topo, para corresponder à menorá sagrada, o candelabro de sete braços que iluminava o santuário judeu nos templos bíblicos.
Coincidência ou intenção ? Mas há mais!
O teto original da capela Sistina era ilustrado com um tema simples, comum em muitas sinagogas: um céu noturno pontilhado de estrelas douradas. A cena era uma alusão ao sonho que Jacob teve enquanto dormia sob as estrelas (Génesis 28: 11-19), logo após fugir da casa de seu pai. Ao fazer esta referência simbólica à história do sonho de Jacob, o teto expressava outra ligação com o Templo Sagrado de Jerusalém. Para tornar a capela ainda mais singular, foi dada grande atenção também ao seu piso. Trata-se de uma obra-prima impressionante que geralmente passa despercebida aos olhos do visitante comum, pois a sua visão é encoberta pelos pés de milhares de turistas e ignorada por causa dos afrescos do teto, mundialmente conhecidos. O piso é uma retoma, no século XV, do estilo medieval de mosaico cosmatesco ( A família Cosmati desenvolveu sua técnica inconfundível em Roma nos séculos XII e XIII). Este estilo decorativo era uma criação imaginativa de formas geométricas e de espirais, em peças cortadas de mármore e vidro colorido, muitas delas retiradas de templos e palácios romanos pagãos. Há exemplos maravilhosos destas decorações e assoalhos cosmatescos autênticos em alguns dos conventos e das igrejas e basílicas mais antigas e belas em Roma e no sul da Itália. É de consenso geral que estes assoalhos muito especiais eram apreciados não apenas por sua beleza e riqueza de cores e materiais, que incluíam o pórfiro roxo, de valor inestimável, mas também por sua espiritualidade esotérica. Muito já se escreveu sobre estes mosaicos, e disso já se ocuparam teólogos, arquitetos e até mesmo matemáticos. Em parte, os mosaicos conferem a qualquer santuário uma sensação de espaço, ritmo e fluidez de movimento mas também servem como instrumento de meditação, de maneira semelhante aos labirintos comuns nas igrejas da Idade Média.
O desenho do piso da Sistina foi elaborado para servir a quatro funções principais. Primeiro, embeleza a capela com uma graça toda especial; Segundo, ajuda arquitetonicamente a definir o espaço, ao mesmo tempo em que o alonga e dá a sensação de fluidez de movimento. Em terceiro lugar, “dirige” os movimentos e a ordem dos ritos durante uma missa da corte papal, mostrando onde o papa deve se ajoelhar, onde a procissão deve parar durante o canto de certos salmos e hinos, onde os celebrantes do serviço religioso devem ficar, onde o incenso deve ser colocado, entre outras coisas. Por fim, a função menos conhecida de todas é de instrumento de meditação cabalística, que mais uma vez liga a capela às fontes judaicas antigas. Dentro dela, há uma gama variada de símbolos místicos: as esferas da Árvore da Vida, os caminhos da alma, as quatro camadas do Universo e os triângulos de Filo de Alexandria.
Cabala (ou Kabbalah) significa, literalmente, em hebraico “aquilo que se recebe”, e refere-se às tradições místicas que compreendem os segredos da Torá, as verdades esotéricas que revelam o conhecimento mais profundo do mundo, da humanidade e do Todo-Poderoso. Filo era um místico judeu de Alexandria, no Egito, que escreveu dissertações sobre a Cabala no século I da era cristã. Ele é normalmente considerado o elo central entre a filosofia grega, o judaísmo e o misticismo cristão. Seus triângulos apontam para cima ou para baixo para mostrar o fluxo de energia entre a ação e a recepção, o masculino e o feminino, Deus e a humanidade, o mundo inferior e o superior.
Uma outra ligação com o templo judeu é o facto notável de que o Selo de Salomão é um símbolo recorrente nos pisos cosmatescos, e encontrado nos desenhos do piso da Capela Sistina. Este símbolo era considerado a chave para a sabedoria esotérica antiga dos judeus. O selo, composto de uma combinação dos dois triângulos de Filo sobrepostos, apontando para cima e para baixo, é chamado hoje de Estrela de David. A estrela é praticamente um emblema universal do judaísmo, e foi escolhida para ser a figura central da bandeira do estado moderno de Israel. Porém, no final do século XV, ainda não era um símbolo representativo do povo judeu, mas de seu conhecimento místico arcaico.
O entendimento do significado mais profundo do selo enquanto parte da Capela Sistina requer uma contextualização. A evidência arqueológica mais antiga do uso judeu deste símbolo é a de uma inscrição atribuída a Josué ben Asayahu no final do século VII a.C. A lenda por detrás desta associação com o rei Salomão – e daí o seu outro nome, Selo de Salomão – é bastante fantasiosa e muito provavelmente falsa. Nas lendas medievais judaicas, muçulmanas e cristãs, assim como em um dos contos das Mil e Uma Noites, o Selo de Salomão, com seu formato hexagonal, era um anel-sinete mágico que supostamente pertencera ao rei e que lhe concedia o poder sobre os demônios (ou jinni), ou de falar com os animais. Segundo alguns pesquisadores, a razão pela qual este símbolo é mais comumente atribuído ao rei David é porque o hexagrama representa a carga astrológica da hora do nascimento de David ou de sua unção como rei. Porém, o significado mais profundo e certamente o mais correto é a interpretação mística que o associa ao sete, o número sagrado, com suas seis pontas ao redor de seu centro.
O número sete tem uma importância religiosa especial no judaísmo. Na Criação, temos os seis dias seguidos do sétimo, o Sabát, o dia de descanso declarado santo por Deus e dotado de uma bênção singular. Todo o sétimo ano é um ano sabático, no qual a terra não pode ser cultivada, e após sete ciclos de sete anos, o ano Jubileu traz liberdade aos que tinham sido vendidos como escravos e aos que se tornaram escravos por causa de dívidas, e o retorno das propriedades aos seus donos originais. Porém, o facto mais importante de todos para a compreensão do significado do uso do número sete nos mosaicos do chão da Capela Sistina é a sua ligação com a menorá do antigo Templo, cujas sete lâmpadas de óleo se apóiam em três braços que saem de cada lado de uma haste central. Já foi sugerido que a Estrela de David se tornou um símbolo padrão nas sinagogas justamente por ser elaborada segundo o esquema 3+3+1: um triângulo para cima, um para baixo e o centro; e isto corresponde precisamente à estrutura da menorá.
Entretanto, graças a artistas, como os da família Cosmati e Michelangelo, o simbolismo judeu continuaria a ser conhecido cada vez mais, por meio de todas as suas obras mais famosas. O segredo mais estranho da capela mais católica do mundo é que o mosaico gigante de seu chão está repleto de Estrelas de David.
— AS APARÊNCIAS ENGANAM nos afrescos originais do século XV.
A atração principal da Capela Sistina , porém, não é nem o seu chão nem o seu teto, mas as suas paredes. Partindo da parede frontal do altar, começam duas séries de painéis – uma sobre a vida de Moisés e outra sobre a de Jesus, duas histórias bíblicas contadas de maneira semelhante ao formato de histórias em quadrinhos.
Para pintar tantos afrescos de execução tão trabalhosa, foi trazida uma equipe formada pelos principais pintores de afrescos do século XV. Se quisermos ser mais precisos, diríamos que a equipe foi enviada. É importante saber disso por causa de quem os enviou, ou seja, Lorenzo de Medici, o homem mais rico de Florença, o mesmo homem que mais tarde descobriria Miguel Ânglo e o criaria como um de seus filhos. O papa Sisto IV odiava Lorenzo e sua família, e lutara contra eles durante muitos anos. Sisto desejava tomar o controle de Florença, capital do livre-pensamento, e de grande riqueza, para que pudesse então assumir o controle de toda a Itália central. Em 1478, o papa tentou eliminar Lorenzo e todo o clã dos Medici de uma vez por todas, planeando assassinar Lorenzo e seu irmão Giuliano, na Catedral de Florença, em frente ao altar principal, durante a missa de Páscoa. O elemento mais blasfemo do plano era o sinal escolhido para marcar o momento da matança: a elevação da hóstia. Até mesmo assassinos profissionais de sangue frio recusaram este trabalho, e o papa teve de contar com a ajuda de um padre e do arcebispo de Pisa. Estes dois trataram dos detalhes juntamente com Girolamo Riario, o sobrinho mais corrupto de Sisto. O papa se recusou a ouvir os pormenores, dizendo de maneira evasiva: “Façam o que for necessário, contanto que ninguém seja morto”. Entretanto, ele ordenou ao seu líder militar Federico da Montefeltro, o duque de Urbino, que reunisse 600 soldados nas colinas ao redor de Florença e esperasse pelo sinal da morte de Lorenzo. O ataque vergonhoso seguiu conforme o planeado... até certo ponto. Giuliano de Medici morreu no local, ferido com 19 punhaladas, mas Lorenzo, embora ferido gravemente, conseguiu escapar por um túnel secreto e sobreviveu. O sinal para a invasão de Florença nunca foi dado. Os florentinos enfurecidos, ao invés de se levantar contra o clã Medici, como Sisto IV esperava, assassinaram os conspiradores. Foi necessário que o próprio Lorenzo intercedesse pessoalmente para que os cidadãos não matassem o cardeal Raffaele Riario, outro sobrinho do papa que não tivera nenhum envolvimento no golpe. Dois anos mais tarde, o papa cedeu e o Vaticano e Florença declararam uma trégua. Foi exatamente nesta ocasião que a nova capela estava pronta para ser redecorada.
Por que razão Lorenzo enviou então os seus pintores mais talentosos para decorar a capela, glorificando o homem que matara o seu irmão e tentara também assassiná-lo?
Segundo as fontes oficiais, este gesto foi uma “oferta de paz”, um ato de perdão e reconciliação. Porém, a explicação oficial é talvez outra e é essencial para se entenderem as mensagens dos afrescos, de conteúdo nem um pouco conciliatório. Lorenzo de fato enviou a elite artística: Sandro Botticelli, Cosimo Rosselli, Domenico Ghirlandaio, que mais tarde seria professor de Michelangelo por um breve período, e Perugino, pintor da Umbria, que posteriormente seria mestre de Rafael. Além de ter de revestir todas as quatro paredes da capela com as séries de painéis sobre a vida de Moisés e a de Jesus, eles foram encarregados de acrescentar uma faixa superior de pinturas retratando os primeiros trinta papas e também um grande afresco da Assunção da Virgem Maria ao Céu na parede frontal do altar, entre as duas janelas. Com tantos afrescos a executar, a equipe de artistas posteriormente trouxe Pinturicchio, Luca Signorelli, Biagio d’Antonio e alguns assistentes. Todos eles eram florentinos orgulhosos, com exceção de Perugino e seu pupilo Pinturicchio.
O papa planejara o seu próprio desenho com várias camadas de simbolismo para a capela. Este tinha o objetivo de ilustrar o sucessionismo para o mundo, como já afirmamos, provando que a Igreja era a herdeira legítima do monoteísmo, por substituir o judaísmo. Para atingir este intento, cada painel da história de Moisés foi emparelhado com um da história de Jesus. A série de painéis de afrescos da parte norte narra a vida de Jesus, da esquerda para a direita, na ordem cristã. A série da parte sul conta a história de Moisés, mas da direita para a esquerda, na ordem hebraica. Esta disposição resultou em oito “pares”:
A descoberta de Moisés bebê no Nilo - O nascimento de Jesus na manjedoura
A circuncisão do filho de Moisés - O batismo de Jesus
A ira de Moisés e sua fuga do Egito - As tentações de Jesus
A separação das águas do mar Vermelho - O milagre de Jesus caminhando sobre as águas
Moisés no monte Sinai - O sermão da montanha de Jesus
A revolta de Coré - Jesus entregando as chaves a Pedro
O último discurso e morte de Moisés - A última ceia de Jesus
Anjos defendendo o túmulo de Moisés - Jesus ressurgido do túmulo
Algumas das “ligações” requerem um esforço de imaginação, mas a ideia era demonstrar que a vida de Moisés serviu apenas para prenunciar a vida de Jesus.
Um outro objetivo do papa era promover o "culto da Virgem Maria". Sisto IV queria dedicar a capela à Assunção de Maria ao Céu, celebrada todos os anos no calendário católico no dia 15 de Agosto. Por este motivo, Perugino pintou o afresco gigante da subida de Maria ao Céu na parede do altar, retratando o próprio papa Sisto IV ajoelhado diante dela. O último desejo do papa – e provavelmente o mais caro ao seu coração – era glorificar e solidificar a sua própria autoridade suprema e a de sua família Rovère. O papado ainda se refazia de séculos de cismas, escândalos, antipapas, intrigas e assassinatos. Havia apenas cinquenta anos que a corte pontifícia retornara a Roma, após o assim chamado “exílio babilónico” dos papas em Avignon, na França. O papa Sisto estava ansioso para demonstrar não só a supremacia do cristianismo sobre o judaísmo e da autoridade divina dos papas sobre o mundo cristão, como também a sua superioridade pessoal sobre todos os papas que o precederam. Foi por esta razão que, por sua ordem, Aarão, o primeiro sumo sacerdote dos judeus, e Pedro, o primeiro papa, foram vestidos de roupas azuis e douradas, as cores heráldicas da família della Rovere. É por isso também que a capela está repleta de desenhos de carvalhos e bolotas em todos os cantos: “rovere” significa “carvalho”, e esta árvore é o símbolo do brasão da família. Pelo mesmo motivo, Sisto também colocou o seu próprio retrato acima da série de pinturas dos primeiros trinta papas, bem no centro da parede frontal, junto à Virgem Maria no Céu.
Com isto em mente, voltemos à nossa questão: por que Lorenzo enviou os seus melhores artistas a Roma para executar este trabalho de auto-engrandecimento do homem que tramara contra ele e sua família?
Conforme alguém demonstrou, a resposta é simples: para sabotar a amada capela de Sisto IV.
Muito provavelmente, foi Botticelli o agitador e coordenador do grupo do projeto de pintura dos afrescos. Os textos oficiais sobre a Capela Sistina apontam Perugino como o líder, mas uma análise rápida demonstra que ele – o único que não era de Florença – não fazia parte da trama. Seu estilo e esquema de cores são completamente diferentes de todos os outros painéis, e o seu simbolismo não contém nenhuma mensagem antipapal; ao passo que, por toda a capela, os outros artistas parecem livres para dar vazão às suas críticas. Cosimo Rosselli tinha um cachorrinho branco que se tornou o mascote dos artistas da Toscana. Não sabemos se permitiam que o cachorro brincasse dentro da capela enquanto os pintores trabalhavam, mas podemos vê-lo fazendo travessuras em todos os painéis de afrescos, exceto os de Perugino, da Umbria. Na Última Ceia, ele aparece saltando junto aos pés de seu dono. No afresco Adoração do Bezerro de Ouro, ele parece na verdade estar saindo do painel e entrando na capela.
Temos que admitir que a presença de um cachorro no santuário não é um grande insulto, e não é mais que uma possível impureza ritual. Porém, os florentinos inseriram imagens bem mais fortes em seus trabalhos para seu ajuste de contas com o papa. Botticelli era quem tinha o maior ressentimento. Após a execução dos conspiradores que atacaram os irmãos de’Medici, Botticelli fizera um afresco mostrando seus cadáveres pendurados na catedral para exibição pública. Esta pintura continha legendas sarcásticas atribuídas ao próprio Lorenzo de Medici. Como parte do tratado de paz oficial entre o Vaticano e Florença em 1480, Sisto insistiu para que este afresco fosse totalmente destruído. Botticelli certamente não estava inclinado a esquecer ou perdoar isso. Por esta razão, em seu painel da Fuga de Moisés do Egito, ele inseriu um carvalho – o símbolo da família della Rovere – acima das cabeças dos arruaceiros pagãos que Moisés afugenta. Perto dos carneiros inocentes e da visão sagrada da Sarça Ardente, colocou uma laranjeira com um cesto de laranjas, o símbolo da família florentina Medici. Na Revolta de Coré, Botticelli vestiu o rebelde Coré de azul e dourado, as cores do clã della Rovere, e bem ao fundo retratou dois barcos: um naufragado, representando Roma, e um outro navegando tranquilamente, com a bandeira de Florença orgulhosamente tremulando no seu topo. No quadro das Tentações de Cristo, ele inseriu o amado carvalho de Sisto em dois lugares: um junto a Satanás quando este é desmascarado, e outro cortado e pronto para ser queimado no Templo.
Biagio d’Antonio, outro filho orgulhoso de Florença, não queria ser deixado para trás. No seu painel, a Separação das Águas do Mar Vermelho, ele mostra o mau faraó usando as cores da família Rovere e uma construção de aparência suspeita, semelhante à própria capela, sendo tragada pelas águas vermelhas revoltas. A nova capela, ainda chamada de Palatina, foi consagrada na festa da Assunção de Maria em 15 de agosto de 1483. O papa, orgulhoso, oficiou a cerimônia mas estava totalmente desconhecedor da grande quantidade de insultos secretos contra ele. Faleceu um ano mais tarde, feliz, mas sem saber que Lorenzo conseguira ridicularizar a sua intenção de fazer da capela um serviço à egolatria papal.
Visto em retrospectiva, é surpreendente notar o quanto os primeiros artistas puderam agir livremente dentro da Capela Sistina. Entretanto, o verdadeiro mestre das mensagens ocultas surgiria uma geração mais tarde: Miguel Ângelo, e com muito mais a dizer.
Este mestre realizou uma grande obra na Capela Sistina com a ideia de transmitir uma mensagem de tolerância e amor universal e, ao mesmo tempo, vingar-se do papa Júlio II que fora sobrinho de Sisto IV. Assim, onde Júlio II queria uma imagem de Jesus Cristo, Miguel Ângelo pintou Zacarias, o homem que alertou para existência de sacerdotes corruptos e incentivou os judeus a reconstruir Jerusalém. O artista colocou a cara de Júlio II na figura de Zacarias e vestiu-o com um manto azul e ouro , cores da família do pontífice, e não resistiu a pintar por detrás da figura dois pequenos anjos fazendo um gesto obsceno na nuca do visado.
Na pintura de Adão e Eva, no Pecado Original, quem apanha o fruto proibido é Adão e a serpente tem braços e pernas , tal como é descrito no Midrash hebreu. Na arca de Noé, esta é representada como uma grande caixa e não como um barco, exatamente como é descrita na Tora; estão ainda representados dois homen , de gatas, vestidos com as cores dos cidadãos de Roma, numa forma pura de humilhação.
No grande mural do altar mor, conhecido como Juízo Final, Miguel Ângelo pinta a Virgem Maria como que incomodada com a atitude do Filho para com os pecadores. Neste enorme mural foram incluídos rostos de personagens conhecidos na época como opositores à classe dirigente da Igreja. Num ato de rebeldia, pintou-se a ele próprio na figura de S. Bartolomeu, numa espécie de assinatura que era proibida aos pintores da época. Podemos ainda dizer que para retratar o pecado da avareza pintou um homem com uma bolsa de dinheiro à cintura e junto dela duas chaves cruzadas imitando o emblema do Vaticano, numa crítica mordaz ao Papa Júlio II.
Coincidência ou intenção ? Mas há mais!
O teto original da capela Sistina era ilustrado com um tema simples, comum em muitas sinagogas: um céu noturno pontilhado de estrelas douradas. A cena era uma alusão ao sonho que Jacob teve enquanto dormia sob as estrelas (Génesis 28: 11-19), logo após fugir da casa de seu pai. Ao fazer esta referência simbólica à história do sonho de Jacob, o teto expressava outra ligação com o Templo Sagrado de Jerusalém. Para tornar a capela ainda mais singular, foi dada grande atenção também ao seu piso. Trata-se de uma obra-prima impressionante que geralmente passa despercebida aos olhos do visitante comum, pois a sua visão é encoberta pelos pés de milhares de turistas e ignorada por causa dos afrescos do teto, mundialmente conhecidos. O piso é uma retoma, no século XV, do estilo medieval de mosaico cosmatesco ( A família Cosmati desenvolveu sua técnica inconfundível em Roma nos séculos XII e XIII). Este estilo decorativo era uma criação imaginativa de formas geométricas e de espirais, em peças cortadas de mármore e vidro colorido, muitas delas retiradas de templos e palácios romanos pagãos. Há exemplos maravilhosos destas decorações e assoalhos cosmatescos autênticos em alguns dos conventos e das igrejas e basílicas mais antigas e belas em Roma e no sul da Itália. É de consenso geral que estes assoalhos muito especiais eram apreciados não apenas por sua beleza e riqueza de cores e materiais, que incluíam o pórfiro roxo, de valor inestimável, mas também por sua espiritualidade esotérica. Muito já se escreveu sobre estes mosaicos, e disso já se ocuparam teólogos, arquitetos e até mesmo matemáticos. Em parte, os mosaicos conferem a qualquer santuário uma sensação de espaço, ritmo e fluidez de movimento mas também servem como instrumento de meditação, de maneira semelhante aos labirintos comuns nas igrejas da Idade Média.
O desenho do piso da Sistina foi elaborado para servir a quatro funções principais. Primeiro, embeleza a capela com uma graça toda especial; Segundo, ajuda arquitetonicamente a definir o espaço, ao mesmo tempo em que o alonga e dá a sensação de fluidez de movimento. Em terceiro lugar, “dirige” os movimentos e a ordem dos ritos durante uma missa da corte papal, mostrando onde o papa deve se ajoelhar, onde a procissão deve parar durante o canto de certos salmos e hinos, onde os celebrantes do serviço religioso devem ficar, onde o incenso deve ser colocado, entre outras coisas. Por fim, a função menos conhecida de todas é de instrumento de meditação cabalística, que mais uma vez liga a capela às fontes judaicas antigas. Dentro dela, há uma gama variada de símbolos místicos: as esferas da Árvore da Vida, os caminhos da alma, as quatro camadas do Universo e os triângulos de Filo de Alexandria.
Cabala (ou Kabbalah) significa, literalmente, em hebraico “aquilo que se recebe”, e refere-se às tradições místicas que compreendem os segredos da Torá, as verdades esotéricas que revelam o conhecimento mais profundo do mundo, da humanidade e do Todo-Poderoso. Filo era um místico judeu de Alexandria, no Egito, que escreveu dissertações sobre a Cabala no século I da era cristã. Ele é normalmente considerado o elo central entre a filosofia grega, o judaísmo e o misticismo cristão. Seus triângulos apontam para cima ou para baixo para mostrar o fluxo de energia entre a ação e a recepção, o masculino e o feminino, Deus e a humanidade, o mundo inferior e o superior.
Uma outra ligação com o templo judeu é o facto notável de que o Selo de Salomão é um símbolo recorrente nos pisos cosmatescos, e encontrado nos desenhos do piso da Capela Sistina. Este símbolo era considerado a chave para a sabedoria esotérica antiga dos judeus. O selo, composto de uma combinação dos dois triângulos de Filo sobrepostos, apontando para cima e para baixo, é chamado hoje de Estrela de David. A estrela é praticamente um emblema universal do judaísmo, e foi escolhida para ser a figura central da bandeira do estado moderno de Israel. Porém, no final do século XV, ainda não era um símbolo representativo do povo judeu, mas de seu conhecimento místico arcaico.
O entendimento do significado mais profundo do selo enquanto parte da Capela Sistina requer uma contextualização. A evidência arqueológica mais antiga do uso judeu deste símbolo é a de uma inscrição atribuída a Josué ben Asayahu no final do século VII a.C. A lenda por detrás desta associação com o rei Salomão – e daí o seu outro nome, Selo de Salomão – é bastante fantasiosa e muito provavelmente falsa. Nas lendas medievais judaicas, muçulmanas e cristãs, assim como em um dos contos das Mil e Uma Noites, o Selo de Salomão, com seu formato hexagonal, era um anel-sinete mágico que supostamente pertencera ao rei e que lhe concedia o poder sobre os demônios (ou jinni), ou de falar com os animais. Segundo alguns pesquisadores, a razão pela qual este símbolo é mais comumente atribuído ao rei David é porque o hexagrama representa a carga astrológica da hora do nascimento de David ou de sua unção como rei. Porém, o significado mais profundo e certamente o mais correto é a interpretação mística que o associa ao sete, o número sagrado, com suas seis pontas ao redor de seu centro.
O número sete tem uma importância religiosa especial no judaísmo. Na Criação, temos os seis dias seguidos do sétimo, o Sabát, o dia de descanso declarado santo por Deus e dotado de uma bênção singular. Todo o sétimo ano é um ano sabático, no qual a terra não pode ser cultivada, e após sete ciclos de sete anos, o ano Jubileu traz liberdade aos que tinham sido vendidos como escravos e aos que se tornaram escravos por causa de dívidas, e o retorno das propriedades aos seus donos originais. Porém, o facto mais importante de todos para a compreensão do significado do uso do número sete nos mosaicos do chão da Capela Sistina é a sua ligação com a menorá do antigo Templo, cujas sete lâmpadas de óleo se apóiam em três braços que saem de cada lado de uma haste central. Já foi sugerido que a Estrela de David se tornou um símbolo padrão nas sinagogas justamente por ser elaborada segundo o esquema 3+3+1: um triângulo para cima, um para baixo e o centro; e isto corresponde precisamente à estrutura da menorá.
Entretanto, graças a artistas, como os da família Cosmati e Michelangelo, o simbolismo judeu continuaria a ser conhecido cada vez mais, por meio de todas as suas obras mais famosas. O segredo mais estranho da capela mais católica do mundo é que o mosaico gigante de seu chão está repleto de Estrelas de David.
— AS APARÊNCIAS ENGANAM nos afrescos originais do século XV.
A atração principal da Capela Sistina , porém, não é nem o seu chão nem o seu teto, mas as suas paredes. Partindo da parede frontal do altar, começam duas séries de painéis – uma sobre a vida de Moisés e outra sobre a de Jesus, duas histórias bíblicas contadas de maneira semelhante ao formato de histórias em quadrinhos.
Para pintar tantos afrescos de execução tão trabalhosa, foi trazida uma equipe formada pelos principais pintores de afrescos do século XV. Se quisermos ser mais precisos, diríamos que a equipe foi enviada. É importante saber disso por causa de quem os enviou, ou seja, Lorenzo de Medici, o homem mais rico de Florença, o mesmo homem que mais tarde descobriria Miguel Ânglo e o criaria como um de seus filhos. O papa Sisto IV odiava Lorenzo e sua família, e lutara contra eles durante muitos anos. Sisto desejava tomar o controle de Florença, capital do livre-pensamento, e de grande riqueza, para que pudesse então assumir o controle de toda a Itália central. Em 1478, o papa tentou eliminar Lorenzo e todo o clã dos Medici de uma vez por todas, planeando assassinar Lorenzo e seu irmão Giuliano, na Catedral de Florença, em frente ao altar principal, durante a missa de Páscoa. O elemento mais blasfemo do plano era o sinal escolhido para marcar o momento da matança: a elevação da hóstia. Até mesmo assassinos profissionais de sangue frio recusaram este trabalho, e o papa teve de contar com a ajuda de um padre e do arcebispo de Pisa. Estes dois trataram dos detalhes juntamente com Girolamo Riario, o sobrinho mais corrupto de Sisto. O papa se recusou a ouvir os pormenores, dizendo de maneira evasiva: “Façam o que for necessário, contanto que ninguém seja morto”. Entretanto, ele ordenou ao seu líder militar Federico da Montefeltro, o duque de Urbino, que reunisse 600 soldados nas colinas ao redor de Florença e esperasse pelo sinal da morte de Lorenzo. O ataque vergonhoso seguiu conforme o planeado... até certo ponto. Giuliano de Medici morreu no local, ferido com 19 punhaladas, mas Lorenzo, embora ferido gravemente, conseguiu escapar por um túnel secreto e sobreviveu. O sinal para a invasão de Florença nunca foi dado. Os florentinos enfurecidos, ao invés de se levantar contra o clã Medici, como Sisto IV esperava, assassinaram os conspiradores. Foi necessário que o próprio Lorenzo intercedesse pessoalmente para que os cidadãos não matassem o cardeal Raffaele Riario, outro sobrinho do papa que não tivera nenhum envolvimento no golpe. Dois anos mais tarde, o papa cedeu e o Vaticano e Florença declararam uma trégua. Foi exatamente nesta ocasião que a nova capela estava pronta para ser redecorada.
Por que razão Lorenzo enviou então os seus pintores mais talentosos para decorar a capela, glorificando o homem que matara o seu irmão e tentara também assassiná-lo?
Segundo as fontes oficiais, este gesto foi uma “oferta de paz”, um ato de perdão e reconciliação. Porém, a explicação oficial é talvez outra e é essencial para se entenderem as mensagens dos afrescos, de conteúdo nem um pouco conciliatório. Lorenzo de fato enviou a elite artística: Sandro Botticelli, Cosimo Rosselli, Domenico Ghirlandaio, que mais tarde seria professor de Michelangelo por um breve período, e Perugino, pintor da Umbria, que posteriormente seria mestre de Rafael. Além de ter de revestir todas as quatro paredes da capela com as séries de painéis sobre a vida de Moisés e a de Jesus, eles foram encarregados de acrescentar uma faixa superior de pinturas retratando os primeiros trinta papas e também um grande afresco da Assunção da Virgem Maria ao Céu na parede frontal do altar, entre as duas janelas. Com tantos afrescos a executar, a equipe de artistas posteriormente trouxe Pinturicchio, Luca Signorelli, Biagio d’Antonio e alguns assistentes. Todos eles eram florentinos orgulhosos, com exceção de Perugino e seu pupilo Pinturicchio.
O papa planejara o seu próprio desenho com várias camadas de simbolismo para a capela. Este tinha o objetivo de ilustrar o sucessionismo para o mundo, como já afirmamos, provando que a Igreja era a herdeira legítima do monoteísmo, por substituir o judaísmo. Para atingir este intento, cada painel da história de Moisés foi emparelhado com um da história de Jesus. A série de painéis de afrescos da parte norte narra a vida de Jesus, da esquerda para a direita, na ordem cristã. A série da parte sul conta a história de Moisés, mas da direita para a esquerda, na ordem hebraica. Esta disposição resultou em oito “pares”:
A descoberta de Moisés bebê no Nilo - O nascimento de Jesus na manjedoura
A circuncisão do filho de Moisés - O batismo de Jesus
A ira de Moisés e sua fuga do Egito - As tentações de Jesus
A separação das águas do mar Vermelho - O milagre de Jesus caminhando sobre as águas
Moisés no monte Sinai - O sermão da montanha de Jesus
A revolta de Coré - Jesus entregando as chaves a Pedro
O último discurso e morte de Moisés - A última ceia de Jesus
Anjos defendendo o túmulo de Moisés - Jesus ressurgido do túmulo
Algumas das “ligações” requerem um esforço de imaginação, mas a ideia era demonstrar que a vida de Moisés serviu apenas para prenunciar a vida de Jesus.
Um outro objetivo do papa era promover o "culto da Virgem Maria". Sisto IV queria dedicar a capela à Assunção de Maria ao Céu, celebrada todos os anos no calendário católico no dia 15 de Agosto. Por este motivo, Perugino pintou o afresco gigante da subida de Maria ao Céu na parede do altar, retratando o próprio papa Sisto IV ajoelhado diante dela. O último desejo do papa – e provavelmente o mais caro ao seu coração – era glorificar e solidificar a sua própria autoridade suprema e a de sua família Rovère. O papado ainda se refazia de séculos de cismas, escândalos, antipapas, intrigas e assassinatos. Havia apenas cinquenta anos que a corte pontifícia retornara a Roma, após o assim chamado “exílio babilónico” dos papas em Avignon, na França. O papa Sisto estava ansioso para demonstrar não só a supremacia do cristianismo sobre o judaísmo e da autoridade divina dos papas sobre o mundo cristão, como também a sua superioridade pessoal sobre todos os papas que o precederam. Foi por esta razão que, por sua ordem, Aarão, o primeiro sumo sacerdote dos judeus, e Pedro, o primeiro papa, foram vestidos de roupas azuis e douradas, as cores heráldicas da família della Rovere. É por isso também que a capela está repleta de desenhos de carvalhos e bolotas em todos os cantos: “rovere” significa “carvalho”, e esta árvore é o símbolo do brasão da família. Pelo mesmo motivo, Sisto também colocou o seu próprio retrato acima da série de pinturas dos primeiros trinta papas, bem no centro da parede frontal, junto à Virgem Maria no Céu.
Com isto em mente, voltemos à nossa questão: por que Lorenzo enviou os seus melhores artistas a Roma para executar este trabalho de auto-engrandecimento do homem que tramara contra ele e sua família?
Conforme alguém demonstrou, a resposta é simples: para sabotar a amada capela de Sisto IV.
Muito provavelmente, foi Botticelli o agitador e coordenador do grupo do projeto de pintura dos afrescos. Os textos oficiais sobre a Capela Sistina apontam Perugino como o líder, mas uma análise rápida demonstra que ele – o único que não era de Florença – não fazia parte da trama. Seu estilo e esquema de cores são completamente diferentes de todos os outros painéis, e o seu simbolismo não contém nenhuma mensagem antipapal; ao passo que, por toda a capela, os outros artistas parecem livres para dar vazão às suas críticas. Cosimo Rosselli tinha um cachorrinho branco que se tornou o mascote dos artistas da Toscana. Não sabemos se permitiam que o cachorro brincasse dentro da capela enquanto os pintores trabalhavam, mas podemos vê-lo fazendo travessuras em todos os painéis de afrescos, exceto os de Perugino, da Umbria. Na Última Ceia, ele aparece saltando junto aos pés de seu dono. No afresco Adoração do Bezerro de Ouro, ele parece na verdade estar saindo do painel e entrando na capela.
Temos que admitir que a presença de um cachorro no santuário não é um grande insulto, e não é mais que uma possível impureza ritual. Porém, os florentinos inseriram imagens bem mais fortes em seus trabalhos para seu ajuste de contas com o papa. Botticelli era quem tinha o maior ressentimento. Após a execução dos conspiradores que atacaram os irmãos de’Medici, Botticelli fizera um afresco mostrando seus cadáveres pendurados na catedral para exibição pública. Esta pintura continha legendas sarcásticas atribuídas ao próprio Lorenzo de Medici. Como parte do tratado de paz oficial entre o Vaticano e Florença em 1480, Sisto insistiu para que este afresco fosse totalmente destruído. Botticelli certamente não estava inclinado a esquecer ou perdoar isso. Por esta razão, em seu painel da Fuga de Moisés do Egito, ele inseriu um carvalho – o símbolo da família della Rovere – acima das cabeças dos arruaceiros pagãos que Moisés afugenta. Perto dos carneiros inocentes e da visão sagrada da Sarça Ardente, colocou uma laranjeira com um cesto de laranjas, o símbolo da família florentina Medici. Na Revolta de Coré, Botticelli vestiu o rebelde Coré de azul e dourado, as cores do clã della Rovere, e bem ao fundo retratou dois barcos: um naufragado, representando Roma, e um outro navegando tranquilamente, com a bandeira de Florença orgulhosamente tremulando no seu topo. No quadro das Tentações de Cristo, ele inseriu o amado carvalho de Sisto em dois lugares: um junto a Satanás quando este é desmascarado, e outro cortado e pronto para ser queimado no Templo.
Biagio d’Antonio, outro filho orgulhoso de Florença, não queria ser deixado para trás. No seu painel, a Separação das Águas do Mar Vermelho, ele mostra o mau faraó usando as cores da família Rovere e uma construção de aparência suspeita, semelhante à própria capela, sendo tragada pelas águas vermelhas revoltas. A nova capela, ainda chamada de Palatina, foi consagrada na festa da Assunção de Maria em 15 de agosto de 1483. O papa, orgulhoso, oficiou a cerimônia mas estava totalmente desconhecedor da grande quantidade de insultos secretos contra ele. Faleceu um ano mais tarde, feliz, mas sem saber que Lorenzo conseguira ridicularizar a sua intenção de fazer da capela um serviço à egolatria papal.
Visto em retrospectiva, é surpreendente notar o quanto os primeiros artistas puderam agir livremente dentro da Capela Sistina. Entretanto, o verdadeiro mestre das mensagens ocultas surgiria uma geração mais tarde: Miguel Ângelo, e com muito mais a dizer.
Este mestre realizou uma grande obra na Capela Sistina com a ideia de transmitir uma mensagem de tolerância e amor universal e, ao mesmo tempo, vingar-se do papa Júlio II que fora sobrinho de Sisto IV. Assim, onde Júlio II queria uma imagem de Jesus Cristo, Miguel Ângelo pintou Zacarias, o homem que alertou para existência de sacerdotes corruptos e incentivou os judeus a reconstruir Jerusalém. O artista colocou a cara de Júlio II na figura de Zacarias e vestiu-o com um manto azul e ouro , cores da família do pontífice, e não resistiu a pintar por detrás da figura dois pequenos anjos fazendo um gesto obsceno na nuca do visado.
Na pintura de Adão e Eva, no Pecado Original, quem apanha o fruto proibido é Adão e a serpente tem braços e pernas , tal como é descrito no Midrash hebreu. Na arca de Noé, esta é representada como uma grande caixa e não como um barco, exatamente como é descrita na Tora; estão ainda representados dois homen , de gatas, vestidos com as cores dos cidadãos de Roma, numa forma pura de humilhação.
No grande mural do altar mor, conhecido como Juízo Final, Miguel Ângelo pinta a Virgem Maria como que incomodada com a atitude do Filho para com os pecadores. Neste enorme mural foram incluídos rostos de personagens conhecidos na época como opositores à classe dirigente da Igreja. Num ato de rebeldia, pintou-se a ele próprio na figura de S. Bartolomeu, numa espécie de assinatura que era proibida aos pintores da época. Podemos ainda dizer que para retratar o pecado da avareza pintou um homem com uma bolsa de dinheiro à cintura e junto dela duas chaves cruzadas imitando o emblema do Vaticano, numa crítica mordaz ao Papa Júlio II.
Extraído de: Os Segredos da Capela Sistina
Nenhum comentário :
Postar um comentário